Movimento dos Focolares

Inundação na Emilia-Romagna (Itália): a esperança que resiste à lama

Jul 4, 2023

Quase um mês e meio depois das inundações que atingiram as regiões de Marche e Emilia-Romagna (Itália), a história da experiência pessoal de Maria Chiara Campodoni, focolarina casada, professora e ex-vereadora do município de Faenza, fortemente afetada por este desastre.

Quase um mês e meio depois das inundações que atingiram as regiões de Marche e Emilia-Romagna (Itália), a história da experiência pessoal de Maria Chiara Campodoni, focolarina casada, professora e ex-vereadora do município de Faenza, fortemente afetada por este desastre. As inundações que atingiram Marche e Emilia-Romagna (Itália) há cerca de um mês e meio causaram a perda de 15 vidas humanas, milhares de desabrigados e a inundação de 23 rios. Até o momento, cerca de 100 municípios foram inundados. Os numerosos deslizamentos de terra afetaram pequenos produtores, dezenas de quilômetros quadrados de terras agrícolas e fazendas foram destruídas pela força da água, junto com pontes e estradas. As contribuições arrecadadas pela Coordenação de Emergência do Movimento dos Focolares, AMU e AFN são atualmente de 182.000 euros. Em colaboração com a APS Emilia-Romagna, foi constituído um comitê local de emergência que identificou algumas áreas de intervenção: Cesena, Sarsina, Faenza, Castel Bolonhese, Ravena. Está sendo feito o levantamento das necessidades da população afetada, sobretudo através da relação pessoal e através da compilação de formulários em que cada um declara os danos sofridos e o pedido. Entre as tantas pessoas atingidas está Maria Chiara Campodoni, focolarina casada, professora e Conselheira do Esporte de 2010-2015 e Presidente da Câmara Municipal de Faenza 2015-2020, que nos conta como está vivendo esse drama, mas também a esperança necessária para ser capaz de seguir em frente. Maria Chiara, como você viveu esse momento? Em Faenza houve duas enchentes. Em nossa casa a água entrou pela primeira vez no dia 2 de maio por 30 cm. Era de tarde, tinha luz e estávamos em casa eu e um de meus filhos. No início encaramos quase como uma aventura, mas nessa mesma noite preferi que o meu marido, que tinha saído para buscar os outros dois filhos nas atividades desportivas, não voltasse, porque lá fora havia muito mais água que no interior e só temos portas de pátio no térreo. Trazê-los de volta para casa significaria deixar entrar muito mais água também. Então eles foram dormir com os avós e nós tentamos carregar algumas coisas para cima, jantamos nos quartos e fomos para a cama. Até os bombeiros que passaram nos tranquilizaram, dizendo que a situação não iria piorar mais do que isso. No dia seguinte, o nível da água dentro e fora era o mesmo e então, de acordo com meu marido, decidimos sair de casa. Quando 15 dias depois começaram a recomendar a evacuação dos andares térreos porque estava prestes a acontecer novamente, toda a população da cidade foi colocada em alerta e entendeu que deveria se mobilizar porque aconteceria algo mais grave. E o que aconteceu na segunda vez? A segunda enchente, aquela da qual escapamos, veio à noite. Por volta das 20h30min: as margens do rio perto da nossa casa transbordaram. Até aquele momento, nós, que estávamos equipados com uma bomba dentro de casa, não tínhamos saído convencidos de que poderíamos controlar o fluxo das bombas e manter a água baixa também com a ajuda de sacos de areia. Ao invés disso, em 20 minutos a água atingiu o primeiro andar, chegou a 3m muito rapidamente e ficamos presos lá. Pedimos ajuda e imediatamente responderam dizendo que chegariam, mas, ao mesmo tempo, naquela mesma tarde o rio Savio já havia transbordado em Cesena, portanto a proteção civil e o corpo de bombeiros, que estavam todos em Faenza no dia anterior, já estavam um pouco mais espalhadas nas várias áreas. Além disso, na minha rua a corrente era tão forte que os veículos motorizados só conseguiram entrar às 4h da noite e não teríamos resistido até aquela hora. Os polícias disseram-nos para irmos para os telhados, mas não temos claraboia, então era ir lá de fora e tentar flutuar. A situação era realmente perigosa. (Na foto, a seta indica o nível atingido pela água). A uma certa altura, um primo do meu marido, sabendo pelas redes sociais que o rio havia transbordado bem perto da nossa casa, ligou para ele e perguntou se já havíamos saído. Pela voz intuiu que corríamos perigo e sendo um atleta, preparou-se como se fosse surfar, colocou a roupa de mergulho, pegou a prancha e saltou para a corrente. Ele nadou até nossa casa e empurrando as ondas, pegou cada um de nós, um de cada vez, levando-nos em segurança até as muralhas da cidade, a 500 metros de nossa casa. O que você viu estando lá fora? Quando se está imersos na corrente, toda a perspectiva muda. A água já tinha ultrapassado as placas das ruas, então você não sabia mais se estava na rua ou no jardim de uma casa. Passamos por cima de portões, por cima de garagens e estávamos tão altos que a uma certa altura ele pediu-me para que me agarrasse ao que parecia ser um arbusto, mas na realidade, agora sei que era uma árvore. Fui a última a ser socorrida. Depois, molhados e encharcados, fomos recebidos em casa por uma senhora que nos conhece. Ele levou para o banheiro, nos deu roupas limpas porque até o frio naquela noite estava terrível e ainda estava chovendo. Nos aquecemos e depois fugimos para 6 km longe da cidade onde mora minha sogra. Tivemos muita sorte porque fomos os primeiros a sair. Além disso, não vivemos o que muitos nos contaram depois, uma verdadeira noite de terror na cidade. As crianças perceberam o perigo? Sim. Tenho três filhos de 10, 8 e 6 anos. A certa altura o mais novo começou a correr para longe das escadas, porque víamos a água subindo degrau a degrau, e ele disse-me: “Faltam 5 degraus, 4 quatro degraus. Vamos para o telhado, temos que fugir”. E eu disse: “estamos aqui na janela, porque lá fora está chovendo. Agora a polícia vai chegar”. Resumindo, perceberam e aos poucos tiveram que metabolizar, principalmente os grandes. Em uma hora, temíamos que não conseguiríamos. Chegando na casa da avó ficaram mais tranquilos, mesmo se, chegando lá, começaram a entender que tínhamos perdido tudo. Disseram-me: “Mãe, agora não temos mais as mochilas e os livros para ir à escolar?” Expliquei-lhes que muitas pessoas iriam nos ajudar e foi o que aconteceu. Como foram os primeiros dias? Onde vocês encontraram abrigo? Ficamos alguns dias com minha sogra porque não podíamos nos locomover pela cidade. Depois, fomos recebidos por uma tia de um amigo do meu filho, que mora fora do país, e que nos emprestou a casa dela no centro da cidade por um mês, a 10 minutos a pé de onde morávamos, então com possibilidade de ir e começar a limpar. Estávamos juntos, mas realmente foi um grande presente e talvez eu tenha percebido isso mais tarde, quando comecei a ouvir as histórias de outras pessoas. Então muitos voluntários começaram a chegar por toda a cidade. Devo dizer que sempre vêm amigos à nossa casa, em parte pelo Movimento dos Focolares e em parte porque meu marido tem muitos contatos. Vieram pessoas de Parma, Piacenza, Veneto e até mesmo aqueles que sofreram o terremoto em Emilia anos atrás realmente sentiram um chamado para vir e dar uma mão. Havia um clima muito bonito, uma verdadeira ajuda, e foi nesse clima que, aos poucos, comecei a jogar tudo fora, mas estava realmente serena. Limpar a lama parece a coisa mais importante no começo, você tenta fazer o seu melhor, com muito esforço, e depois você percebe que não são as coisas, os objetos que compõem a sua vida, mas todo o resto. Seu marido também é dono de um restaurante… Sim. Ele tinha visto pelas câmeras que felizmente não havia água ali, mas precisava ir ver pessoalmente. Um dia saiu às seis da manhã pensando em pegar a estrada, mas também estava fechada. Tivemos uma ideia: “vamos ligar ao vice-presidente da câmara, e dizer-lhe que se te levarem ao restaurante da proteção civil, podes cozinhar para todos os que precisarem”. E devo dizer que ele aceitou de bom grado o nosso serviço, porque já havia muitos desabrigados lá. Felizmente, todos os deficientes e idosos foram levados mais cedo e enviados para um hotel que fica muito perto do restaurante do meu marido, mas que não possui cozinha ativa. Então meu marido e dois funcionários passaram um dia inteiro no restaurante, fizeram 700 marmitas entre o almoço e o jantar. Destes desabrigados tinha 100 pessoas, os bombeiros, a proteção civil e como o restaurante fica mesmo na rua Emilia, que é um ponto de passagem, muitas das pessoas que ficaram presas na rua, que dormiram no carro sem comida, chegaram ao hotel pedindo ajuda. Toda a área de Cesena e Forlì foi paralisada. E agora como vocês pensam em se organizar? Atualmente saímos da pequena casa que nos hospedou. Vamos nos mudar para uma casa que temos à beira-mar por um tempo e depois alugamos um apartamento por 18 meses esperando para arrumar a nossa casa. A perspectiva é regressar em setembro de 2024. Depois ficam muitas interrogações, antes de mais nada, temos que entender se haverá empresas que consigam renovar todas estas casas, porque somos muitos. Estamos falando de 12.000 pessoas fora de casa. 6.000 famílias só em nossa cidade e algumas casas, as mais antigas, foram declaradas inabitáveis. Agora as casas têm que secar. Já destruímos tudo. Tínhamos parquet e retiramos, os tetos falsos do térreo desceram sozinhos quando a água baixou e com a ajuda de muitos conseguimos pelo menos desligar as louças sanitárias. Agora todas as manhãs vamos abrir as janelas e à noite vamos fechá-las para ligar o desumidificador. Felizmente estamos no verão. Se tivesse acontecido no outono, teria sido um transtorno muito maior. A solidariedade continua? Absolutamente sim e de várias formas. Por exemplo, no início pensamos em procurar uma casa já mobiliada para não ter que mudar duas vezes, mas percebemos que as pessoas começaram a doar tudo: guarda-roupas, colchões, quartos, sofás. Optamos por pegar uma casa vazia que podemos começar a mobiliar com as coisas que recebemos e depois, em 18 meses, trazer tudo de volta para a nossa casa, até porque aí certamente haverá outras prioridades. As pessoas ficam felizes em ajudar e devo dizer que foi uma lição para mim. Lembro-me que um dia após a primeira enchente, minha casa virou de cabeça para baixo e minha máquina de lavar quebrou. Disse para mim mesma “Vou fazer três sacolas, uma com panos brancos, uma colorida, uma preta e depois vou trabalhar. A primeira colega que me pergunta ‘como te posso ajudar?’, eu digo-lhe ‘se você estiver disposta a qualquer coisa, estas são roupas para lavar’”. Não tive tempo de dar um passo para a escola que ela já havia providenciado. Nestes casos cria-se um vínculo mais forte com as pessoas e acima de tudo não tive vergonha de pedir ajuda. Aceitamos o que nos foi dado e sinto que é também uma forma de mostrar quem eu sou, mostrando as minhas necessidades e dizer que está tudo bem, nos amamos assim, por quem somos. Um bom vínculo também foi criado com os vizinhos. Há quatro anos e meio, que moramos lá, mas nunca tinha entrado no jardim de muitos vizinhos, porque a vida é frenética mesmo, a gente corre. Em vez disso, agora entramos, nos cumprimentamos, nos ajudamos. Que fase se inicia agora? Começou a segunda fase, a da criação de comissões de cidadãos para iniciar a comunicação com a administração municipal. Eu teria desistido imediatamente por vários motivos, sobretudo por ter exercido algumas funções no passado, mas depois percebi que, sem me expor muito, ouvindo, ficando por dentro dos chats, ajudando os responsáveis ​​por esses comitês, eu posso fazer a minha parte. Devo isso aos meus filhos que ainda me perguntam “temos que voltar a morar ali mesmo? Vamos construir uma escada externa que nos leve até o telhado da próxima vez?”. É preciso uma cidadania ativa que monitore as situações. Senti que também tinha de colocar a minha experiência à disposição, nas formas certas, criando ligações tanto quanto possível, porque agora, como sempre acontece quando há necessidade de reconstruir, o maior medo é ficar sozinho. Você está esperançosa? Sim, com certeza. No outro dia, tínhamos de dar um presentinho a esta senhora que nos hospedou na sua casa durante o primeiro mês e, como Faenza é a cidade da cerâmica, consegui um azulejo para pendurar na parede com a frase “As coisas bonitas da vida bagunçam”. Eu disse a mim mesmo que isso era uma grande bagunça, enorme. Vamos levar algum tempo para nos reerguer e vamos conseguir, mas sinto que não poderia ter tido certas experiências sem ter vivido este momento tão difícil. Eu realmente sinto que cheguei naquele ponto em que você olha para o essencial, para o que importa. Foi terrível, mas não consigo pensar só no desastre, que a água levou tudo e termina ali. Há muito, muito mais além de tudo isso.

Maria Grazia Berretta (Entrevista feita por Carlos Mana – Foto: cortesia de Maria Chiara Campodoni)

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