Um olhar vivo, um sorriso doce que, embora transparecendo tristeza, permanece também quando fala dos trágicos acontecimentos no país que agora tornou-se a sua pátria por opção. Ghada, o que levou você a retornar à Síria?
Aos 20 anos deixei família e pátria para seguir a Deus. Em setembro de 2013, quando decidi
voltar para a Síria, o entusiasmo era o mesmo, intacto. Não me assustava a ideia de que poderia morrer. Mais do que tudo me atraía ir viver junto daquelas pessoas que havia conhecido anos atrás, e fazer com que sentissem que não estão abandonadas. O que me impulsionou foi o desejo de partilhar a vida delas, os seus medos, a precariedade do seu cotidiano. É que aqui as bombas explodem quando você menos espera.
Mas não há nenhum aviso antes dos bombardeios, para poder se proteger de alguma maneira?
Não existem sirenes que anunciam as incursões aéreas e nem podemos nos basear em alguma estratégia para supor quando e onde os mísseis atacarão. Por outro lado já estamos no quinto ano de guerra e não se pode viver para sempre nas barricadas. Podemos parar por um dia, um mês, mas depois, mesmo se os morteiros explodem, a vida deve continuar: as crianças vão para a escola e os pais vão trabalhar para manter a família. Tudo prossegue, na precariedade e no risco mais absoluto. Eu tinha visto o mesmo drama quando estava no focolare no Líbano, mas aqui é tudo mais grave, mais difícil. Aqui respira-se terror e violência em cada esquina.
Você já tinha estado na Síria, no passado. Pode nos dizer alguma coisa sobre a mudança que encontrou?
Quando eu morava no focolare, no Líbano, viajava para Aleppo e Homs, e também para Damasco, porque já naquela época muitas pessoas desejavam manter-se em contato com o Movimento dos Focolares. Pela sensibilidade e a profundidade interior do povo sírio era espontâneo estabelecer relacionamentos significativos. Compartilhávamos os valores cristãos, que são muito sentidos aqui. Mesmo na pluralidade das Igrejas e dos diferentes ritos, típica dessa terra, existia, e existe ainda, uma grande harmonia entre todos. Quando foi projetado o focolare em Aleppo, em 1994, fui para lá, para iniciar com outras duas focolarinas. Fiquei nove anos. Para a Síria eram tempos de prosperidade. O país não tinha débitos públicos e o PIB estava em contínua ascensão. Até nós, moças, podíamos sair livremente à noite.
Agora existe a tempestade. Mas o pior é a ausência de perspectiva de que essa guerra possa acabar. Voltei para dizer, junto com os outros focolarinos que estão na Síria, que não a esquecemos, que Jesus nos plasmou como uma única família e por isso queremos correr os mesmos riscos. Nós também, como todos, vamos ao trabalho, à igreja, ao mercado, sem saber se voltaremos para casa. Estamos lá pelo amor que nos liga, e a comunidade na Síria sabe que estamos dispostos a dar até a vida por eles. Como eles por nós. Esta reciprocidade é realmente maravilhosa. Eles competem para fazer com que estejamos bem, para partilhar conosco tudo o que têm.
Vocês, focolarinas, estão em Damasco, uma cidade fascinante, rica de arte, de história, uma famosa meta turística. Como se vive aí atualmente?
Na cidade, mas também nos vilarejos, todos os dias desafia-se a morte. Os transportes muitas vezes entram em colapso pela falta de combustível e pelos constantes bloqueios. Sabe-se quando se sai, mas nunca quando se volta. Nas casas a eletricidade falta durante horas, e também a água. Corre-se o risco da exasperação. Tanto que o êxodo – para quem pode deixar o país – continua a crescer. Calcula-se que a emigração, que também comporta enormes riscos, já superou os 6 milhões de pessoas. Mas a religiosidade é sempre muito sentida. Na Via Sacra, da Sexta-Feira Santa, mesmo conscientes de que as bombas podiam explodir de um momento ao outro, os cristãos estavam todos na procissão, levando inclusive as crianças. Recentemente os adolescentes que conhecemos falaram por Skype com um grupo de portugueses. Eles queriam se organizar para enviar ajudas e perguntavam o que era mais necessário. Mesmo precisando de muitas coisas materiais os nossos jovens repetiam: «rezem por nós, rezem pela paz, rezem para que se detenha esta espiral de ódio».
A escolha que vocês fazem, de permanecer na Síria, é forte e corajosa…
Não nos sentimos heróis. Como não estamos aqui a título pessoal. Antes de viajar pude encontrar o Papa Francisco. Senti em seu encorajamento todo o amor da Igreja, que se faz próxima desse povo tão provado. Nós nos sentimos sustentados pelo amor de todo o Movimento dos Focolares, do mundo inteiro. Precisamos disso para continuar a ter esperança, impotentes diante da supremacia dos interesses econômicos e da proliferação do mercado internacional de armas. A nossa missão é participar e compartilhar as vicissitudes cotidianas do povo. Festejamos com eles as datas comemorativas, criamos momentos de lazer entre adultos e crianças, para procurar aliviar o stress. Organizamos momentos de espiritualidade, rezamos juntos pela paz. No Natal os nossos jovens organizaram um concerto: participaram 300 pessoas, inclusive amigos muçulmanos. Recentemente festejamos um casamento. Na família tinham sido mortos dois filhos e por causa do luto a noiva não podia sair de casa com o seu vestido. Então ela saiu do focolare e foi acompanhada até a igreja por todos nós. Procuramos inserir-nos nas atividades da Igreja local e com as outras expressões eclesiais que existem aqui, e nos ajudamos a aliviar os sofrimentos e privações das pessoas. Para continuar a ter esperança e acreditar, apoiando todos os esforços para que chegue a paz.
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