Movimento dos Focolares

Janeiro de 2004

São cerca de 30 os conflitos hoje em acto no nosso planeta. Alguns são patentes a todos, outros são esquecidos mas não por isso menos cruéis. Violência, ódio e atitudes de disputa constatam-se muitas vezes também nos países que vivem “em paz”.
Todos os povos, todas as pessoas anseiam profundamente pela paz, pela concórdia, pela unidade. No entanto, apesar dos esforços e da boa vontade, após milénios de História, reconhecemo-nos incapazes de uma paz estável e duradoira.
Jesus veio trazer-nos a paz, mas uma paz – diz-nos Ele – que não é como a que «dá o mundo» (1), pois não é apenas ausência de guerra, de brigas, de divisões, de traumas. A “sua” paz é isso, mas também é muito, muito mais! É plenitude de vida e de alegria, é salvação integral da pessoa, é liberdade, é fraternidade no amor entre todos os povos. Ele próprio é a nossa paz (2). Por isso, pode dizer-nos:

«Dou-vos a minha paz»

E o que é que Jesus fez para nos dar a “sua” paz? Pagou-a pessoalmente. Precisamente quando nos prometia a paz, era atraiçoado por um dos seus amigos, entregue nas mãos dos inimigos, condenado a uma morte cruel e humilhante. Colocou-se entre os adversários, tomou sobre Si os ódios e as separações, abateu os muros que separavam os povos(3). Ao morrer na cruz, depois de ter experimentado por amor a nós o abandono do Pai, reconciliou os homens com Deus e entre eles, trazendo à terra a fraternidade universal.
Também hoje a construção da paz pede-nos um amor forte, capaz de amar até quem não nos retribui. Um amor capaz de perdoar, de ultrapassar o conceito de “inimigo”; de amar a pátria dos outros como a nossa. Exige que, de pessoas cobardes, concentradas talvez no que nos interessa e no que nos diz respeito, passemos a ser pequenos heróis quotidianos que, dia após dia, servindo os irmãos e as irmãs, estão prontos a dar até a vida em favor deles. Exige ainda que tenhamos coração e olhos novos para amar e ver todas as pessoas como candidatas à fraternidade universal.
Podemos perguntar: «Também os vizinhos irascíveis? Também os colegas no serviço que me impedem de subir na carreira? Também os que militam num partido diferente do meu ou torcem por uma equipa de futebol antagónica? Também as pessoas de religião ou de nacionalidade diferentes da minha?».
Sim, todos eles são meus irmãos e irmãs. A paz começa precisamente aqui, a partir do relacionamento que eu souber instaurar com cada próximo. «O mal brota do coração do homem», escrevia Igino Giordani, e «para extirpar o perigo da guerra é preciso extirpar o espírito de agressão, de exploração e egoísmo que dá origem à guerra: é preciso reconstruir uma consciência» (4).

«Dou-vos a minha paz»

Como é que Jesus nos pode dar hoje a sua paz? Ele pode estar presente no meio de nós através do nosso amor recíproco, através da nossa unidade (5). Poderemos, assim, experimentar a sua luz, a sua força, o seu próprio Espírito, cujos frutos são: amor, alegria, paz (6). A paz e a unidade caminham lado a lado.
Neste mês de Janeiro, em que rezamos de modo especial pela realização da comunhão total e visível entre as Igrejas, damo-nos conta do forte nexo entre a unidade e a paz. Nos últimos anos vimos como as Igrejas e os cristãos, individualmente, trabalharam juntos pela paz.
De facto, como poderemos testemunhar aquela paz profunda que Jesus trouxe se entre nós, cristãos, não houver a plenitude do amor, se não formos um só coração e uma só alma como acontecia na primeira comunidade de Jerusalém? (7)

O mundo só muda se nós mudarmos. É lógico que temos de trabalhar, segundo as nossas possibilidades, para solucionar os conflitos, para elaborar leis que favoreçam a convivência das pessoas e dos povos; mas é sobretudo pondo em relevo aquilo que nos une que poderemos contribuir para a criação de uma mentalidade de paz e trabalhar juntos pelo bem da humanidade.
Se testemunharmos e difundirmos valores autênticos, tais como a tolerância, o respeito, a paciência, o perdão, a compreensão, todas as outras atitudes, que contrastam a paz, desaparecerão espontaneamente.
Foi esta a nossa experiência durante a Segunda Guerra Mundial, quando nós (um pequeno grupo de jovens) decidimos viver só para amar. Éramos pequenas e tímidas, mas, logo que procurámos viver umas pelas outras, ajudar os outros a partir dos mais necessitados e servi-los, arriscando até a vida, tudo mudou. Nos nossos corações jorrou uma força nova e notámos na sociedade uma mudança de fisionomia: uma pequena comunidade cristã, semente de uma “civilização do amor”, começou a renovar-se. No fim, é o amor que vence, porque é o mais forte de tudo.
Tentemos viver assim neste mês, para sermos fermento de uma cultura nova de paz e justiça. Veremos renascer em nós e ao nosso redor uma nova humanidade.

Chiara Lubich

 

1) Cf. Jo 14, 27;
2) cf. Ef 2, 14;
3) cf. Ef 2, 14-18;
4) L’inutilità della guerra, Roma 2003, 2ª edição, pág. 111;
5) cf. Mt 18-20;
6) cf. Gl 5, 22;
7) cf. Act 4, 32.

 

Palavra de Vida – Dezembro de 2003

Este período de Advento, o tempo em que nos preparamos para o Natal, nos propõe a figura de João Batista. Ele foi mandado por Deus a preparar os caminhos para a vinda do Messias, e exigia uma profunda mudança de vida de todos os que acorriam: “Produzi frutos que mostrem vossa conversão”. E àqueles que lhe perguntavam: “Que devemos fazer?”, ele respondia:

«Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo!»

Por que devo dar ao outro algo do que me pertence? Porque o outro, tendo sido criado por Deus como eu, é meu irmão, minha irmã; portanto, é parte de mim. “Não te posso fazer mal sem me ferir”, dizia Gandhi. Fomos criados em dom um para o outro, à imagem de Deus que é Amor. Temos a lei divina do amor inscrita no nosso sangue. Jesus, vindo habitar entre nós, nos revelou isso com clareza quando nos deu o seu mandamento novo: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. É a “lei do Céu”, a vida da Santíssima Trindade trazida à terra, o coração do Evangelho. Assim como no Céu o Pai, o Filho e o Espírito Santo vivem na comunhão plena a tal ponto que são uma só coisa, também na terra nós somos o que devemos ser na medida em que vivemos a reciprocidade do amor. E assim como o Filho diz ao Pai: “Tudo o que é meu é teu, e tudo o que é teu é meu”, assim entre nós o amor é vivido em plenitude quando compartilhamos não só os bens espirituais mas também os bens materiais.  
As necessidades de um próximo nosso são como se fossem nossas. Alguém está desempregado? Sou eu que estou. Alguém está com a mãe doente? Vou ajudá-lo como se fosse a minha mãe que estivesse doente. Outros estão com fome? É como se eu estivesse com fome: procuro providenciar comida para eles como faria para mim mesmo.
Foi essa a experiência dos primeiros cristãos de Jerusalém: “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava suas as coisas que possuía, mas tudo entre eles era posto em comum.” Essa comunhão dos bens, embora não sendo obrigatória, era vivida intensamente. Não se tratava, como haveria de explicar o apóstolo Paulo, de “pôr em aperto uns para aliviar os outros”, mas “o que se deseja é que haja igualdade.
São Basílio de Cesaréia diz: “Ao faminto pertence o pão que tu reténs. Ao homem nu, o manto que tu guardas nos teus cofres; ao miserável, o dinheiro que guardas escondido.
E santo Agostinho: “Aquilo que é supérfluo para os ricos pertence aos pobres.
“Também os pobres têm a possibilidade de se ajudarem uns aos outros: um pode colocar suas pernas a serviço do que é aleijado; o outro, seus olhos, para guiar o que é cego; um outro ainda pode visitar os doentes.

«Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo!»

Também hoje podemos viver como os primeiros cristãos. O Evangelho não é uma utopia. É o que demonstram, por exemplo, os novos Movimentos eclesiais que o Espírito Santo suscitou na Igreja para fazer reviver, com exuberância, o radicalismo evangélico dos primeiros cristãos e para responder aos grandes desafios da sociedade de hoje, na qual são imensas as injustiças e a pobreza.
Lembro-me dos primeiros tempos do Movimento dos Focolares, quando o novo carisma infundia nos nossos corações um amor muito especial pelos pobres. Quando os encontrávamos na rua, tomávamos nota de seus endereços numa caderneta, para depois irmos visitá-los e ajudá-los; para nós, eram Jesus: “Foi a mim que o fizestes.”.
Depois de tê-los visitado nos seus barracos, nós os convidávamos para almoçar em nossas casas. Para eles colocávamos a toalha mais bonita, os melhores talheres, os alimentos mais selecionados. No primeiro focolare sentavam-se à nossa mesa, para a refeição, uma focolarina e um pobre, uma focolarina e um pobre…
A um certo ponto pareceu-nos que fosse realmente vontade do Senhor que nós nos tornássemos pobres para estar a serviço dos pobres e de todos. Então, no meio de um quarto do primeiro focolare, cada uma de nós colocou aquilo que considerava supérfluo: uma blusa, um par de luvas, um chapéu, até mesmo um casaco de pele… E hoje, para ter o que dar aos pobres, temos até empresas que oferecem empregos e que cedem seus lucros para serem distribuídos!
Mas ainda há sempre muito a fazer pelos “pobres”.

«Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo!»

Temos muitas riquezas a serem colocadas em comum, mesmo que não pareça. Temos uma sensibilidade que pode ser refinada, temos conhecimentos a serem alargados para podermos ajudar concretamente, para encontrarmos o modo de viver a fraternidade. Temos afeto no coração para dar, cordialidade a ser manifestada, alegria a ser comunicada. Temos tempo que pode ser colocado à disposição, orações, riquezas interiores a colocar em comum falando ou escrevendo; mas às vezes temos também objetos, bolsas, canetas, livros, dinheiro, casas, carros que podemos colocar à disposição… Talvez estejamos acumulando muitas coisas com a idéia de que um dia elas nos poderão ser úteis, enquanto ao nosso lado está alguém que precisaria disso com urgência.
Assim como cada planta absorve da terra somente a água de que necessita, assim também nós devemos procurar ter somente aquilo de que precisamos. E é até bom que de vez em quando percebamos que nos falta alguma coisa; é melhor sermos um pouquinho pobres do que um pouquinho ricos.
“Se cada um conservasse apenas o necessário”, dizia são Basílio, “e dedicasse o supérfluo aos indigentes, não haveria mais nem ricos nem pobres.”
Vamos experimentar, começando a viver assim. Com certeza Jesus não deixará de nos mandar o cêntuplo, e assim teremos a possibilidade de continuar doando. No fim, ele nos dirá que tudo aquilo que tivermos doado, fosse a quem fosse, foi a ele que doamos.

Chiara Lubich

 

Novembro de 2003

Jesus tinha iniciado a sua vida pública fazia pouco tempo. Convidava à conversão, anunciava que o Reino de Deus está próximo, curava toda sorte de doenças e de enfermidades. As multidões começavam a segui-lo. Então ele subiu a uma montanha e, dirigindo-se a todos os que o rodeavam, expôs o seu programa de vida. É o que costumamos chamar de “Sermão da Montanha”.
A novidade do anúncio de Jesus fica evidente já desde as primeiras palavras do seu discurso, quando ele proclama feliz não quem é rico, poderoso, influente, mas quem é pobre, humilde, pequenino, puro de coração, quem chora e está oprimido. É a inversão do modo comum de pensar, sobretudo na nossa sociedade que muitas vezes valoriza o consumismo, o hedonismo, o prestígio… É a “boa nova” trazida por Jesus, que dá alegria e esperança aos últimos, que inspira confiança no amor de Deus, um Deus que vai ao encontro de quem está na provação e na dor. Esse anúncio de alegria e de salvação já está inteiramente resumido na primeira das oito bem-aventuranças, aquela que promete o Reino dos Céus aos pobres no espírito:

«Felizes os pobres no espírito…»

Mas o que significa ser “pobre no espírito”? Significa estar desapegado dos bens e das coisas que possuímos, das criaturas, de nós mesmos… Numa palavra, significa pospor no nosso coração tudo o que nos impede de nos abrirmos a Deus, para fazer a sua vontade, e de nos abrirmos ao próximo “fazendo-nos um” com ele para amá-lo como ele deve ser amado, prontos até mesmo a abandonar tudo: pai, mãe, “campos” e pátria, se é isso que Deus nos pede.  
Ser “pobre no espírito” significa depositar nossa confiança não nas riquezas, mas no amor de Deus e na sua providência. Muitas vezes somos “ricos” de preocupações pela saúde, de inquietação por causa de nossos parentes, de apreensões devido a um certo trabalho, de incertezas sobre a maneira de nos comportarmos, de receio pelo futuro… Tudo isso pode bloquear a nossa alma e fechá-la em si mesma, impedindo que se abra a Deus e aos irmãos. Pois bem, justamente nesses momentos de suspensão o “pobre no espírito” acredita no amor de Deus e lança nele toda e qualquer preocupação, experimentando o seu amor de Pai.
Somos “pobres no espírito” quando nos deixamos nortear pelo amor para com os outros. É então que partilhamos o que temos, colocando-o à disposição de quem quer que esteja em necessidade: um sorriso, o nosso tempo, os nossos bens, as nossas capacidades. Tendo doado tudo por amor, somos pobres, ou seja, estamos esvaziados, anulados, livres, e temos o coração puro.
Essa pobreza, que é fruto do amor, torna-se, por sua vez, fonte de amor: esvaziados de nós mesmos – e portanto livres -, estamos em condições de acolher plenamente, sem nenhuma reserva, a vontade de Deus, e de acolher cada irmão e cada irmã que passa ao nosso lado.
A todos aqueles que vivem essa pureza de coração e essa pobreza no espírito Jesus garante a posse do Reino dos Céus: eles são felizes porque deles é o Reino dos Céus.

«… porque deles é o Reino dos Céus.»

O Reino dos Céus não pode ser comprado com a riqueza nem pode ser conquistado com o poder. Ele é recebido de presente, gratuitamente. Por isso Jesus insiste que sejamos como crianças, ou como os pobres que precisam receber tudo dos outros, como as crianças. E o Espírito Santo, atraído por aquele vazio de amor, pode preencher a nossa alma porque não encontra nenhum obstáculo que impeça a plena comunhão com ele.
O “pobre no espírito”, não tendo reservado nada para si, tem tudo; ele é pobre de si mesmo e rico de Deus. Também aqui vale o dito evangélico: “Dai e vos será dado”; nós damos tudo o que temos e recebemos nada mais nada menos que o Reino dos Céus.
É a experiência de uma mãe de família, da Argentina, que nos conta:
“A minha sogra tinha muita afeição pelo seu filho, meu marido, chegando até a ser ciumenta. Essa atitude sempre criou dificuldades entre nós e endureceu meu coração diante dela. Um ano atrás, um exame médico revelou que ela estava com um tumor e precisava de cuidados e assistência que sua única filha não tinha condições de dar. As palavras do Evangelho, que eu estava procurando viver desde algum tempo, mudaram meu coração: eu estava aprendendo a amar. Superando todos os receios, acolhi minha sogra em casa. Comecei a vê-la com olhos novos e a querê-la bem: cuidando dela, era também de Jesus que eu cuidava, era a ele que eu dava assistência.
E ela, que não ficou indiferente ao amor, para minha grande surpresa retribuía cada gesto meu com igual amor. A graça de Deus tinha realizado o milagre da reciprocidade!
Passaram-se meses de sacrifícios – que não foram um peso para mim – e, quando minha sogra nos deixou serenamente e foi para o Céu, ficamos todos com a paz no coração.
Naquele período percebi que eu estava esperando um filho, que nós desejávamos havia nove anos! Esse filho é para nós o sinal concreto do amor de Deus que nos plenifica”.

Chiara Lubich

 

Outubro de 2003

Jesus sempre surpreende com o seu modo de agir e de falar. Ele se distancia da mentalidade comum que considerava insignificantes as crianças sob o ponto de vista social. Os apóstolos não querem que elas fiquem perto dele, do mundo dos “adultos”: elas só iriam atrapalhar. Também “os sumos sacerdotes e os escribas ficaram indignados, ao ver […] as crianças que gritavam no templo: 'Hosana ao Filho de Davi!'” e pediram que Jesus restabelecesse a ordem. Mas Jesus tem uma atitude completamente diferente: chama as crianças, as abraça, estende as mãos sobre elas, as abençoa e as coloca até mesmo como modelo para os seus discípulos:  

«Deixai as crianças virem a mim. Não as impeçais, porque a pessoas assim é que pertence o Reino de Deus»

Em outra passagem do Evangelho Jesus diz que, se não nos convertermos e não nos tornarmos como crianças, não entraremos no Reino dos Céus. 
Mas por que o Reino de Deus pertence a quem se assemelha a uma criança? Porque a criança se abandona confiante aos cuidados do pai e da mãe: crê no amor deles. Quando está nos braços deles, se sente segura, não tem medo de nada. Mesmo quando percebe algum perigo ao seu redor, basta que ela abrace com mais força o pai ou a mãe para logo se sentir protegida.
Às vezes pode parecer até mesmo que o pai deixa o filho em dificuldades: por exemplo, para tornar mais emocionante um salto. Mesmo assim a criança se joga, confiante.
É assim que Jesus quer o discípulo do Reino dos Céus. Assim como a criança, o cristão autêntico acredita no amor de Deus, se lança nos braços do Pai celeste, tem uma confiança ilimitada nele; nada mais lhe faz medo, porque nunca se sente só. Mesmo nas provações, ele crê no amor de Deus, acredita que tudo aquilo que acontece é para o seu bem. Quando tem uma preocupação, ele a entrega ao Pai e, confiante como a criança, tem certeza de que Ele tudo resolverá. Assim, como uma criança, o cristão se abandona completamente nele, sem pensar muito.

«Deixai as crianças virem a mim. Não as impeçais, porque a pessoas assim é que pertence o Reino de Deus»

As crianças dependem dos pais em tudo: comida, roupa, casa, cuidados, instrução… Também nós, “crianças evangélicas”, dependemos em tudo do Pai: ele nos alimenta como alimenta os pássaros do céu, nos veste como veste os lírios do campo, conhece e nos dá aquilo de que precisamos, ainda antes que nós o peçamos. Até mesmo o Reino de Deus, não somos nós que o conquistamos; nós o recebemos como um dom das mãos do Pai.
E ainda mais: a criança não pratica o mal porque nem o conhece. O discípulo do Evangelho, quando ama, evita o mal, mantém-se puro e volta a ser inocente. A criança, não tendo experiência, enfrenta a vida confiante, como numa aventura sempre nova. A “criança evangélica” põe tudo na misericórdia de Deus e, esquecendo o passado, começa a cada dia uma vida nova, disponível diante das sugestões do Espírito, sempre criativo. A criança não aprende a falar sozinha, tem necessidade de alguém que a ensine. O discípulo de Jesus não segue os próprios raciocínios, mas aprende tudo da Palavra de Deus, até o ponto de falar e viver conforme o Evangelho.
O filho tende a imitar o próprio pai. Quando alguém lhe pergunta o que vai ser quando crescer, muitas vezes ele diz que seguirá a profissão do pai. Assim também a “criança evangélica” imita o Pai celeste que é o Amor, e ama como Ele ama: ama a todos, porque o Pai “faz nascer o seu sol sobre maus e bons e faz cair a chuva sobre justos e injustos”; é a primeira a amar porque Ele nos amou quando éramos ainda pecadores; ama gratuitamente, sem interesses, porque o Pai celeste faz assim…
É por isso que Jesus gosta de estar rodeado pelas crianças e as apresenta como modelo:

«Deixai as crianças virem a mim. Não as impeçais, porque a pessoas assim é que pertence o Reino de Deus»

De fato, as crianças nos surpreendem continuamente. “Ontem papai me pediu que eu fosse ao depósito para pegar uma coisa”, me escreve Betty, uma menina de 6 anos, de Milão. “Estava escuro e desci os degraus com medo. Então rezei a Jesus e senti que ele estava perto de mim”.
Irene, Hilária e Laura, três irmãzinhas, de Florença (Itália), vão de carro com a mãe ao supermercado. Passando na frente da casa do avô, pedem para ir vê-lo. “Vão vocês – diz a mãe – eu espero aqui”. Quando elas voltam, perguntam: “Por que você não foi com a gente?” E ela: “O avô me tratou mal. Assim ele aprende!” E Hilária: “Mamãe! Nós devemos amar a todos, até mesmo os inimigos…” A mãe não sabe o que responder. Olha para a filha e sorri: “Vocês têm razão; me esperem aqui”! E vai sozinha falar com o avô.
Podemos aprender das crianças como acolher o Reino de Deus.

Chiara Lubich

 

Setembro 2003

São palavras chocantes. Jesus manda cortar o pé ou a mão, arrancar o olho, se eles forem motivo de queda. Bem sabemos que essas palavras não devem ser tomadas ao pé da letra, embora elas mantenham toda a força de uma espada de dois gumes. Elas exprimem este conceito: diante das possíveis ocasiões de pecado, devemos estar dispostos a renunciar a tudo, inclusive às coisas e às pessoas mais caras, para não perder aquilo que realmente importa: “entrar na vida”, ou seja, atingir a comunhão com Deus e a nossa salvação.
Nos Evangelhos, a expressão “motivo de queda” ou “de escândalo” indica tudo aquilo que se interpõe entre nós e Deus, tornando-se um obstáculo no cumprimento da sua vontade; é como “areia na engrenagem” que bloqueia o nosso caminhar atrás de Jesus, é como uma armadilha preparada para nos fazer cair no pecado. Há momentos em que o olho, a mão, o pé são “motivos de escândalo”, ou seja, nos induzem a renegar Jesus, a traí-lo, a preferir outras coisas em seu lugar.
Foi isso que uma jovem de 23 anos chamada Santa Scorese, de Bari, no sul da Itália, entendeu muito bem quando, em 1991, preferiu morrer a perder a sua pureza, ameaçada por um rapaz da sua idade. Para ela, Deus valeu mais do que a própria vida.

«Se teu pé te faz cair, corta-o! É melhor entrar na vida tendo só um dos pés do que, tendo os dois, ser lançado ao inferno.»

Esta Palavra de Vida desmascara o “homem velho” que existe em nós. Com efeito, o pecado não vem das coisas, ou seja, de fora, mas nasce do nosso íntimo, do nosso coração. O “homem velho” vive em nós quando cedemos às ciladas do mal e quando fazemos concessões às nossas piores inclinações: egoísmo, sede de poder, de fama, de riquezas…. 
O “homem velho” deve dar lugar ao “homem novo”, que é Jesus em nós.
Será que podemos arrancar, com as nossas próprias forças, as paixões desordenadas do nosso coração e fazer nascer em nós a vida divina? Somente Jesus, com a sua morte, pode fazer morrer o nosso “homem velho” e, com a sua ressurreição, transformar-nos em “homens novos”. Ele pode dar-nos a coragem e a determinação na luta contra o mal, o amor leal e radical pelo bem. Dele provém aquela liberdade interior, aquela paz e aquela alegria inefável que nos elevam acima de todos os horrores do mundo e nos fazem experimentar desde agora uma antecipação do Céu.

«Se teu pé te faz cair, corta-o! É melhor entrar na vida tendo só um dos pés do que, tendo os dois, ser lançado ao inferno.»

O “homem novo” em nós deve crescer e ser protegido contra as ciladas do “homem velho”. E qual é a nossa parte? Em 1949 eu escrevi: “Existem muitos modos de limpar um quarto: juntar cisco por cisco; usar uma vassoura pequena, ou uma grande, ou um grande aspirador de pó etc. Ou ainda, para estar num ambiente limpo, podemos mudar de quarto, e pronto. Da mesma forma, para nos santificarmos: em vez de fazer grandes esforços, podemos “retirar-nos” imediatamente e deixar Jesus viver em nós. Ou seja, podemos viver transferidos em algo diferente: por exemplo, no próximo que está perto de nós, momento por momento; viver a vida dele com toda a sua plenitude”.
Amar! Nisso se resume toda a doutrina de Jesus. Afinar o nosso coração e torná-lo capaz de escutar, de identificar-se com os problemas e as preocupações dos nossos próximos, compartilhar suas alegrias e dores, fazer cair aquelas barreiras que ainda nos dividem, superar julgamentos e críticas, sair do nosso isolamento para nos colocarmos à disposição de quem está necessitado ou se encontra na solidão, construir em todo lugar a unidade desejada por Jesus.
Se vivermos assim, Deus nos atrairá para a comunhão com Ele, cada vez mais íntima, e nos tornará quase inabaláveis e inatacáveis diante das ilusões e das atrações do mundo.

«Se teu pé te faz cair, corta-o! É melhor entrar na vida tendo só um dos pés do que, tendo os dois, ser lançado ao inferno.»

Jesus nos manda também eliminar (“cortar”) com decisão aquelas realidades (coisas, pessoas, situações) que poderiam ser ocasião de escândalo para nós. É o que nos diz a expressão evangélica “renuncie a si mesmo”. O cristão tem a coragem de ir contra as tendências egoístas, para que elas não se tornem um estilo de vida.
Durante este mês queremos sair de nós mesmos, amando quem está perto de nós, cortando qualquer apego a tudo aquilo que não devemos amar. Vamos fazer limpeza de tudo o que deve ser eliminado do nosso coração. Nenhum sacrifício é grande demais quando se trata de não perder a comunhão com Deus. A cada corte florescerá a alegria no coração, a alegria verdadeira, aquela que o mundo desconhece.
 
Chiara Lubich

 

Agosto de 2003

Um Deus que fala a nós como a amigos! O antigo povo de Israel se orgulhava de ter um Deus tão próximo, que lhe dava leis e normas tão justas, como lemos neste trecho do Deuteronômio, que faz parte do Antigo (ou Primeiro) Testamento.
Justamente pelo fato de a Palavra de Deus ter em si mesma um extraordinário fascínio, corremos o risco de acreditar que basta escutá-la, e tudo está feito; ao passo que a Palavra deve ser vivida. Esse é o ponto.
Também o apóstolo Tiago alertava os cristãos, no Novo Testamento: “Todavia, sede praticantes da Palavra e não meros ouvintes, enganando-vos a vós mesmos”. Moisés ensinava a mesma coisa quando se dirigia a todo o povo com estas palavras:

«E agora, Israel, ouve as leis e decretos que eu vos ensino a cumprir.»

Portanto, trata-se de escutar a Palavra e de vivê-la. 
Além disso, nas Palavras de Jesus, Ele mesmo está presente, as suas Palavras são Ele mesmo. E são palavras eternas; são, portanto, atuais em cada momento; são universais, valendo conseqüentemente para todos, indo além de qualquer raça e cultura; não são simples recomendações, sugestões, ordens, como podem ser as palavras humanas: elas contêm e transmitem a Vida.
No final do seu grande Sermão da Montanha, Jesus nos deixou uma famosa parábola a esse respeito: aquele que ouve com entusiasmo as suas Palavras, mas depois não as traduz em vida, é comparado a uma casa construída sobre a areia; chegam os ventos e as chuvas – ou seja, outras propostas humanas mais fáceis e sedutoras, doutrinas que encantam e iludem com os seus lampejos passageiros – e a pessoa desaba miseramente porque nela a mensagem evangélica não se tornou vida.
Mas depois Jesus compara aquele que põe em prática a sua Palavra a uma casa construída sobre a rocha: podem chegar as provações, as tentações, as dúvidas, o desnorteamento, mas aquela pessoa permanece firme no caminho do Evangelho, continua acreditando nas Palavras de Deus, porque comprovou que elas são verdadeiras.
A vivência da Palavra de Deus realiza uma verdadeira revolução na nossa vida e na vida da comunidade humana com a qual partilhamos o Evangelho.
As Palavras de Jesus devem ser vividas com a simplicidade das crianças! Ele nos diz: “Dai e vos será dado” (Lc 6,38). Quantas vezes podemos constatar que, quanto mais damos, tanto mais recebemos! Quantas vezes percebemos que as nossas mãos não ficaram vazias porque, cada vez que demos a quem estava necessitado, recebemos cem vezes mais. E quando não tínhamos nada para dar? Jesus não disse, por acaso: “Pedi e vos será dado” (Mt 7,7)? Pedíamos…, e a nossa casa se enchia de todo tipo de bens, a serem, por sua vez, também doados.
Quando a preocupação nos oprime devido a alguma situação que nos parece ir além das nossas forças, quando a angústia nos paralisa, lembremo-nos das Palavras de Jesus: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e carregados de fardos…” (Mt 11,28); e quando tivermos lançado n'Ele toda inquietação, veremos voltar a paz e, com ela, a solução dos nossos problemas.
A Palavra de Deus dobra o nosso eu, anula o egoísmo, substitui o nosso modo de pensar, de querer, de agir, pelo modo de Jesus. Vivendo a Palavra, somos tomados pela lógica divina, pela mentalidade evangélica, e vemos tudo com olhos novos. Mudam também os nossos relacionamentos com os outros: pessoas que antes não se conheciam, quando vivem juntas a Palavra de Deus e comunicam entre si as experiências que ela provoca, descobrem que são irmãos, tornam-se povo, Igreja viva. Uma única Palavra do Evangelho, vivida por muitas pessoas, poderia mudar o curso da história.
A Palavra de Deus, quando vivida, realiza milagres. E então nasce no nosso coração uma confiança nova, ilimitada, no amor do Pai, que assiste com a sua intervenção quotidiana os seus filhos. As suas Palavras são verdadeiras. Se nós as vivemos, também Ele as coloca em prática, ao pé da letra, e nos dá aquilo que Ele promete: o cêntuplo aqui na terra, a plenitude da vida e a alegria sem fim do Paraíso.

Chiara Lubich